Bela Vingança
A cultura e os Rudson
Por Vitor Velloso
Festival de Sundance 2020
A surpresa, em meio às bombas que o Globo de Ouro nos reserva, foi “Bela Vingança” de Emerald Fennell que chega como o melhor filme da competição. O longa se utiliza de uma série de dispositivos de gêneros industriais, para compor uma obra que assume-se como produto mas zomba de um arquétipo consolidado socialmente. Incluindo os mediciner (cujo significado determina a realidade de todas as coisas: pessoas, objetos, sensações, sentimentos, etc.).
A estrutura segue como uma secção de tarefas, que são cumpridas conforme a narrativa avança. Existe aqui uma estrutura de vingança que não segue o fetiche clássico em torno de violência e sangue, mas de uma dívida que deve ser cobrada. O benefício da dúvida é a saudação que mantém uma sociedade presa aos grilhões da misoginia, do feminicídio, uma cultura de estupros, abusos e assédios que são perdoados com mais rigor que qualquer outro crime. Mariana Ferrer ter de conviver com seu agressor André de Camargo e o cúmplice de um crime teatralizado pela classe dominante, Rudson Marcos é um crime que o Brasil deveria pagar. É sobre isso que se trata “Bela Vingança”: Criminosos como André de Camargo e Rudson Marcos sendo expostos às atrocidades de seus atos. O amiguinho do “eu não fiz nada, só assisti” também. Ah, o do “mas eu só filmei” também. E a que “mas nossa, você tinha fama de sair com vários caras” igualmente.
A protagonista joga com o “benefício da dúvida” ao seu favor. Mas quando o barato é bem utilizado, bate um desespero né?
A linguagem entra aqui cadenciando a narrativa a partir de uma estrutura que compreende os espaços de ação e os de repouso. A composição da casa de Cassandra (Carey Mulligan) é distinta dos demais locais, os enquadramentos são mais incisivos, centralizadores, ora afasta, ora acolhe. Quando os homens sentem-se acuados, expostos aos próprios crimes, a câmera acompanha a provocação feita por Cassie e a “virilidade” dos homens indo “pras cucuias”, as desculpas esfarrapadas, as ofensas infantis e recalcadas. “Bela Vingança” entrega um trabalho feito para concatenar uma série de crimes cometidos diariamente e jogar na mesma moeda (não de maneira tão suja, baixa e criminosa) o retorno de uma cultura que está a serviço do homem. Aqui, há um recorte majoritário de classe, onde essa burguesia acadêmica, intelectual, branca e de “família de bem” é desfigurada em seu próprio banho de sangue. A questão de classe surge a partir da impunidade generalizada através do poder, seja ele da influência ou do capital em si.
Enquanto boa parte da cinematografia se pergunta como um estupro pode ser enquadrado na tela, “Bela Vingança” dá um aula de como não fazer. Ensinando também, que uma morte como quebra dramática de um processo de clímax, pode ser uma das cenas mais agonizantes do ano, provavelmente dos próximos anos. A resolução do filme não está em uma catarse pragmática como uma mensagem programada… Será? Esses artifícios que servem como uma grande ironia macabra de uma sociedade que esconde seus monstros em jalecos e máscaras sociais do “cara bacana” transformam a obra em uma projeção que não é fácil de assistir, pois limites dessa representação na ficção são esgarçados para que haja uma provocação diante do fato. Ainda que pelo virtual.
“Bela Vingança” fosse um documentário como ele seria? Os exemplos são inúmeros e semanalmente se amontoam novos casos. A própria reitora assume “Um ou dois por semana”, em uma universidade nos EUA. Vale lembrar que aqui no Rio de Janeiro, as universidades possuem casos assombrosos de estupro que são engavetados ou acobertados, pois “não vamos acabar com a vida de um jovem”. Claro, não? Porque a da mulher já foi arruinada. E digo isso, por uma proximidade com quem já sofreu abuso e viu a pessoa acordar chorando inúmeras vezes pela madrugada.
Por algum momento o texto pode ter deixado de ser uma crítica convencional, acontece, paciência. Mas o longa de Emerald Fennell fica ecoando por um tempo na cabeça. Um bom tempo.